Tradução – Introdução de “Radical Feminism Today”

Introdução de “Radical Feminism Today”
Denise Thompson

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A tendência geral dos argumentos nesse livro é a de que o feminismo radical não é uma forma de feminismo entre outros, mas simplesmente feminismo “não modificado” (MacKinnon, 1987: 16), e de que a prática comum de qualificar o feminismo com qualquer das variedades de enquadramentos pré-existentes serve para dissimular o significado central do feminismo. Nos 1970s, esses enquadramentos tendiam a ser resumidos sob os títulos de “feminismo liberal”, “feminismo socialista” e “feminismo radical”; subsequentemente, eles se multiplicaram em uma pletora de “feminismos” que desafiam enumeração. Mas tal caracterização disfarça as relações de poder envolvidas. O que tem acontecido não é uma luta sobre o significado do feminismo entre competidores igualados, mas um fluxo de ataques alimentados por lealdades a variedades do pensamento malestream, contra o que é rotulado como “feminismo radical”. Essa rotulagem serve ao propósito ideológico de abrir espaço no interior do feminismo para outros “feminismos”, deste modo proporcionando uma plataforma para atacá-lo a partir de dentro.
Este presente trabalho é uma investigação de um dos mais influentes lugares do processo de desmantelar o feminismo a partir de dentro, o que eu venho a chamar de “feminismo acadêmico”. Por “feminismo acadêmico” eu não quero dizer tudo que é produzido em universidades sob o título de “feminismo”. Menos ainda quero dizer todo o trabalho feminista que é acadêmico em tom e formato, uma vez que considero meu próprio trabalho como acadêmico nesse sentido. O que estou me referindo é a este trabalho, auto-identificado como “feminista”, que tanto ignora a problemática central do feminismo de oposição à supremacia masculina, ou que critica trabalho feminista genuíno. O significado, valor, verdade e realidade do feminismo, como eu devo estar argumentando ao longo, é sua identificação da supremacia masculina e oposição a ela, e sua luta concomitante por um status humano para as mulheres em ligação com outras mulheres, que não está às custas de ninguém, e que está fora da definição e controle masculinos.
Porque as disciplinas acadêmicas são convencionalmente masculino-identificadas, é dificilmente surpreendente que um feminismo que expõe tais interesses não é permitido um espaço no cânone acadêmico. Que algum trabalho feminista na academia tenha não obstante sido capaz de identificar e resistir às coerções e seduções do pensamento malestream, é um tributo ao compromisso, persistência e dedicação de sua autora. Existem várias feministas no interior da academia cuja política feminista é direta e inequívoca, e que foram bem-sucedidas em transmití-la a seus estudantes, mas elas estão na minoria combatente como feministas radicais em toda parte. Mas em muitos textos auto-identificados feministas emanando da academia, os sinais de suas origens são simplesmente muito evidentes. O chefe desses sinais é a equivocação, ou completa repudiação, da questão da dominação masculina. Enquanto que isso pode ser inadvertido é, não obstante, sistemático. Construções de “feminismo cultural”, “essencialismo”, “puritanismo”, “falso universalismo”, “politicamente correto”, “branco e classe média”, “a-histórico”, etc., são tipicamente direcionadas contra esses escritos feministas que mais claramente identificam a dominação masculina e suas maneiras. [1]
Embora a crítica do feminismo acadêmico seja uma de minhas maiores preocupações, eu não discuto o pós-modernismo em qualquer detalhe. Isso pode parecer uma omissão curiosa à luz da esmagadora influência do pós-modernismo na teorização feminista na academia em anos recentes. A omissão, no entanto, é deliberada. Eu não discuto o pós-modernismo como um quadro identificável porque, assim o fazer, mesmo como crítica, seria reforçar sua posição de preeminência. Focar atenção, mesmo criticamente, no pós-modernismo, seria conceder-lhe credibilidade como um empreendimento feminista, enquanto que, de um ponto de vista feminista, é meramente outro ardil da supremacia masculina. Como Mia Campioni o coloca:

A reação intelectual branca, masculina e classe média a essa revolta [do “outro”] tem sido a de apropriar essa reivindicação à “alteridade” como sua própria experiência reveladora. (…) Como um teórico homem declarou unilateralmente: “nós descobrimos que somos todos outros” (Paul Ricoeur, citado em H. Foster, ed., The Anti-Aesthetic, 1983: 57). Ele esqueceu que estava mais uma vez falando por todos “nós”. Os barulhentos protestos dos outros até agora mudos (ou ignorados/não ouvidos) devem ter vindo como um choque enorme para ele. (…) Ele não podia entender esses protestos de qualquer outro modo se não por assumindo esse “outro” a ser ele de novo, ou para estar de novo ali para ele apropriar para si mesmo. (Campioni, 1991: 49-50 – ênfase dela)

Por outro lado, eu sim consigno muitas das questões que têm sido trazidas sob a bandeira pós-moderna, e muitos dos textos que discuto são explicitamente identificados como “pós-modernos”.
O referente do feminismo que estarei aludindo do começo ao fim deste presente trabalho é aquela “segunda onda” do feminismo, inicialmente conhecido como o Movimento de Libertação das Mulheres, datando do final dos 1960s e início dos 1970s. O feminismo, no sentido de mulheres defendendo seus próprios interesses em face da supremacia masculina, é de duração muito maior do que as últimas três décadas e, por isso, chamar essa manifestação de “segunda onda” faz uma injustiça à longa história das lutas das mulheres em seu próprio nome (Lerner, 1993; Spender, 1982). (Não existe “terceira onda” – o feminismo no momento é uma clarificação e sustentação aos insights e ganhos do Movimento de Libertação das Mulheres em face do backlash supremacista masculino, e daquelas cooptações e recuperações que penetram (trocadilho) no corpo mesmo do próprio feminismo. Menos ainda chegamos a qualquer era “pós-feminista”, pela simples e óbvia razão de que a supremacia masculina ainda existe.) Mas apesar de que o “feminismo” possui conotações históricas maiores do que o atribuo aqui, minha tarefa não é escrever uma história do feminismo ao longo dos tempos; é, de preferência, se engajar na “auto-clarificação das lutas e desejos” da época em que eu mesma vivi (para parafrasear um insight de Marx). [2]
Como mencionei acima, é o feminismo radical que fornece meu ponto de vista e que considero como o feminismo per se. Mas embora estarei argumentando ao longo que muito do que é chamado “feminismo” não é, eu frequentemente permiti manter a designação de “feminismo”, mesmo quando argumento contra ele. Em outras palavras, uso o termo “feminismo” de uma maneira sistematicamente ambígua. Às vezes quero dizer o feminismo per se, isso é, o feminismo radical que identifica e se opõe à supremacia masculina; e às vezes aceito a auto-identificação como “feminismo” mesmo enquanto discordando com isso. Que é o que deve ficar claro a partir do contexto. Eu mantive a ambiguidade no interesse da irrestrição porque isso reside nos textos em discussão. É às vezes o caso de que eu critico um aspecto de um texto que em outras considerações exibe impecáveis credenciais feministas.
Os textos que uso para exemplificar esse tipo de feminismo acadêmico foram selecionados aleatoriamente. Eles são exemplos somente, e não em qualquer sentido principais ofensores nas questões que identifico. Eles se destinam a ilustrar certos temas, e não castigar autores individuais ou pedaços particulares de trabalho. Eu poderia ter escolhido qualquer número de outros textos para ilustrar esses temas, que são endêmicos na teorização feminista acadêmica e não peculiares a particulares autores.
Minha tarefa não é separar quem é feminista de quem não é. A questão de definir o feminismo não é uma questão de quem é (ou não é) uma feminista. Enquanto pode realmente ser o caso de que ninguém tem o direito de dizer a alguém se ela é ou não uma feminista, isso não é o que está envolvido. Ver isso dessa forma pode somente impedir o progresso do feminismo porque ele obstrui o importante projeto de auto-clarificação ao colocar uma proibição em dizer o que o feminismo é. Isso reduz a política a uma questão de preferência pessoal e opinião. A questão crucial não é “quem é uma feminista?”, mas “o que é o feminismo?”. Essa última pergunta só pode ser consignada com referência à lógica da teoria e prática feministas. O significado de “feminismo” precisa ser radicalmente contestado e debatido. Mas isso não pode acontecer tão longo quanto o feminismo continue a ser implicitamente definido somente em termos de qualquer coisa dita ou feita por qualquer uma que se identifique como uma feminista.
Como um exercício na teoria feminista radical, este presente trabalho é um pouco incomum. A escrita feminista radical em seu conjunto não tendeu a se engajar em tentativas de dizer o que o feminismo é. Pois, se o feminismo radical não foi bem recebido na cademia, o sentimento tem sido mútuo – nem esteve o feminismo radical ansioso em se intrometer nos níveis mais misteriosos da teorização. Aparecendo como faz das políticas práticas das vidas e experiências das mulheres, e brotando diretamente da consciência modificada que é o feminismo, a teoria tendeu a mostrar a si mesma nas questões consignadas e nas maneiras nas quais essas questões são interpretadas, em vez de ser dita abertamente.[3] Na maioria dos casos, a teoria feminista é implícita nos textos feministas, em vez de explicitamente decifrada. Em geral, essa tem sido uma estratégia deliberada da parte de teóricas feministas radicais. Isso significou que o feminismo radical permaneceu atado a questões de real interesse das mulheres, em vez de ser atraído pelas seduções da teoria pela teoria (Stanley and Wise, 1993). Na maior parte, o feminismo radical focou em expor os piores excessos do sistema social que é a supremacia masculina. A necessidade de dizer o que o feminismo é, no entanto, se tornou urgente e premente à luz da força e influência do backlash anti-feminista, um backlash que está cada vez mais se mascarando como o “feminismo” em si. Este presente projeto é uma contribuição a esse debate.
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[1] Para uma crítica do conceito de “essencialismo” e seu uso injustificado contra o feminismo radical, veja Thompson, 1991, capítulos 7 e 10.
[2] “Letter to Ruge”, Kreuznach, setembro de 1843, em Early Writings, Penguin Books, 1975: 209.
[3] A referência é à distinção de Ludwig Wittgenstein entre “mostrar” e “dizer”: “O que pode ser mostrado não pode ser dito” (Wittgenstein, 1951: 4.1212). A distinção pode ser absoluta no caso da lógica. Mas um compromisso político tal como o feminismo deve ser capaz de identificar explicitamente os interesses, significados e valores que determinam tanto o que o feminismo está lutando contra quanto o que está lutando para. Nesse sentido, qualquer distinção entre o que pode ser dito e o que deve simplesmente ser mostrado é provisório. Está atado a certos propósitos e mudanças de acordo com a tarefa em mãos.

Fonte:
THOMPSON, Denise. Introduction. In: Radical Feminism Today. Great Britain: SAGE Publications, 2001. p. 1-4.