Sexo Não é Trabalho e Nossos Corpos Não Estão à Venda
Ruchira Gupta
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Esse discurso foi proferido por Ruchira Gupta em 1º de julho de 2010 no 4º “World Forum on Human Rights” em Nantes, França. Ruchira Gupta é a fundadora e presidenta da “Apne Aap Women Worldwide”, uma organização de base que ela fundou em 2002, que trabalha na questão do tráfico humano e os direitos das mulheres. Gupta trabalhou por 25 anos pelos direitos de mulheres e garotas, especialmente para a abolição da prostituição e tráfico sexual. Hoje, Apne Aap tem impacto na vida e nos meios de subsistência de milhares de mulheres e crianças. Participe e apóie os empenhos da Apne Aap. Contato: Apne Aap International, 250 West 57th St., Suíte 1527, New York, NY 10107, 646-233-3064 ou D-56, terceiro piso, Anand Niketan, New Delhi-110021, Índia, fone: +91 11 24110056/ 46015940, e-mail: contact@apneaap.org, www.apneaap.org.
Namaste. Eu trago saudações de 10 mil e 72 garotas e mulheres que são membras da minha organização, Apne Aap, na Índia. Muitas delas são vítimas e sobreviventes da prostituição. Eu trago uma mensagem delas para a conferência, visto que debatemos o reforço do direito do trabalho num período de crise econômica.
As mulheres da Apne Aap solicitam a todos/as os/as ativistas pelos direitos humanos a não aceitar sua exploração como trabalho. Elas solicitam a nós a rejeitarmos a normalização de sua exploração sexual por aqueles que dizem que isso é uma escolha. Elas dizem que sua prostituição e seu tráfico sexual não são uma escolha, mas uma falta de escolha. Elas não escolheram terem nascido pobres, de casta baixa ou mulheres. Membras da Apne Aap decidiram utilizar o termo “mulheres na prostituição” para adultas e o termo “crianças prostituídas” ao invés de “crianças prostitutas ou crianças trabalhadoras do sexo” para garotas e garotos.
Membras da Apne Aap sentem que:
1. O termo “trabalhadora do sexo” esteriliza a inerente natureza exploradora da prostituição e invalida as experiências traumáticas das mulheres de subjugação, degradação e dor.
2. O termo “trabalhadora do sexo” naturaliza e torna aceitável na sociedade a exploração de mulheres ou crianças.
3. O termo “trabalhadora do sexo” torna conveniente para diferentes Estados e governos a ignorarem as políticas estruturais, sociais, econômicas e políticas que forçam as mulheres à prostituição.
4. Muitas vezes, governos, legisladores e consumidores de sexo prostituído argumentam que as mulheres escolhem a prostituição como uma escolha de ocupação ao invés de trabalharem em fábricas, servidão doméstica ou outras formas de trabalho rígido ou mal pago. Eles esquecem, ou escolhem tornar invisível, que, para mulheres, outras opções foram limitadas em termos de empregos altamente remunerados (especialmente quando falta educação superior ou maridos/pais decidem ter controle sobre o tempo de uma mulher), e a prostituição e a pornografia restam enquanto ocupações altamente remuneradas disponíveis para mulheres. Eles recusam-se a olhar ou reexaminar o fato de que as políticas econômicas e sociais tornam indisponíveis para mulheres outros empregos lucrativos e que a discriminação de gênero e a segregação ocupacional direcionam as mulheres para determinados empregos.
5. O termo “trabalhadora do sexo” categoriza a prostituição como um tipo de trabalho. Elas dizem que a prostituição não pode ser categorizada como trabalho (mesmo trabalho exploratório em fábricas ou servidão doméstica) porque dissocia a própria pessoa da atividade. Ela sempre envolve penetração do corpo ou invasão dele. Para lidar com a experiência, muitas membras da Apne Aap separam-se emocionalmente de seus corpos – efetivamente segmentando a si mesmas, ou entrando em experiências extracorpóreas. Portanto, além de se arriscarem com doença ou morte, elas sofrem do profundo trauma psicológico da alienação de seus próprios corpos.
Enquanto movimentos trabalhistas podem e efetivamente garantem determinados critérios e condições mínimas para trabalhadores, fornecendo energia e tempo necessário para o trabalhador ser um ser humano realizado, a prostituição inerentemente não pode assim ser. Eu mencionarei quatro pontos aqui:
a. Todos os movimentos trabalhistas lutam por salários mínimos. Na prostituição não existem salários mínimos garantidos, pois o preço de uma mulher diminui com a idade e tempo de noite e, às vezes, localização. Além disso, no sexo estabelecido no bordel não existem tais coisas como salários mínimos. Durante os primeiros 5 anos, o dono do bordel possui a mulher ou criança e a mantém como uma cativa escrava. Durante os próximos 5 anos, ela pode dar metade do que ela ganha e, mais tarde, ela é permitida a manter tudo o que ela ganhar, mas sua capacidade de obter diminui.
b. Todos os movimentos trabalhistas aspiram por certas condições mínimas de trabalho. Na prostituição, todas as mulheres enfrentam violência que não pode ser legislada, porque estão, em última instância, sozinhas com o comprador do sexo prostituído. Em um legalizado bordel de luxo na Austrália, por exemplo, os quartos estão equipados com botões de pânico, mas um fanfarrão relata que as chamadas de mulheres por ajuda nunca podem ser respondidas rápido o suficiente para prevenir violência por homens que buscam sexo prostituído, que ocorrem regularmente. Tanto na prostituição de bordéis quando na ausência dele, as mulheres são forçadas a acelerar o processo de ganhar mais dinheiro ao prestar serviço e aumentar o número de compradores, às vezes até 20. Ainda, elas são forçadas a providenciar todos os tipos de serviços e atividades de alto risco como sexo sem proteção, porque, na maioria das vezes, elas não estão em qualquer posição em que possam negociar. Elas são mantidas presas em bordéis, não têm acesso a assistência médica ou educação e frequentemente são vendidas quando ainda crianças. Suas crianças brincam no chão enquato elas prestam serviços a seus compradores. Elas vivem em quartos pequenos com janelas gradeadas, terminam com insônia, abortos repetidos, icterícia, queimaduras de cigarro, HIV, AIDS e trauma. E enquanto algumas dessas condições podem ser reguladas no sexo estabelecido em bordéis, elas não podem ser reguladas no sexo de rua, absolutamente. Taxas de mortalidade na prostituição são altas devido à violência sexual, doenças sexualmente transmissíveis como HIV e AIDS, abortos repetidos e tentativas de suicídio relacionados ao trauma psicossocial. A idade média de uma mulher na prostituição na Índia é agora de 35 anos.
Em Kolkata, eu conversei com um grupo de mulheres que tinha pedido pela sindicalização da prostituição para garantir direitos das trabalhadoras. Todas as membras que eu entrevistei admitiram enfrentar violência quando estão sozinhas com o cliente. “A cama estava coberta de sangue.” “Ele apagou as pontas dos cigarros nos meus seios.” “Eles pagaram por isso, nós não podemos parar.” Um médico trabalhando para este grupo disse-me que ele partiu depois de ter que costurar a vagina de uma garota nepalesa de quinze anos pela terceira vez.
c. Todos os movimentos trabalhistas trabalham para garantir direitos de aposentadoria como uma pensão de velhice. A prostituição não pode garantir benefícios de velhice porque como não há nenhum empregador definido na prostituição de rua e bordéis, a mulher e a criança é frequentemente vendida de novo e de novo de um dono de bordel para outro. Na prostituição, quanto mais velha fica uma mulher, menos ela é capaz de adquirir um salário e, muitas vezes, acaba nas ruas, sem salário, com uma doença instalada em seu corpo e com algumas crianças. Na Alemanha e em uma área perto de Las Vegas nos EUA onde a prostituição foi legalizada e as agências do governo tentaram realizar requerentes a benefícios de desemprego, mostram que elas tinham tentado encontrar “trabalho” na assim chamada “indústria da hospitalidade” da prostituição a fim de se tornarem elegíveis a tais benefícios.
d. Definitivamente e mais importante para os movimentos trabalhistas é a questão da dignidade do trabalhador. Movimentos trabalhistas têm assegurado que mineiros não tenham que rastejar em minas, mas andar eretos. No entanto, na prostituição, a mulher ou a criança é constantemente humilhada fisicamente, emocionalmente e psicologicamente. Seu preço é constantemente negociado com a chegada da noite ou à medida que ela fica mais velha. Ela é forçada a sexualizar seu corpo por um período de tempo e então desexualizá-lo novamente em outro momento.
O termo “trabalhadora do sexo” dá a falsa impressão de agência e escolha exercitada pela mulher e a criança na prostituição. As experiências de vida das membras da Apne Aap revelam que a escolha e a agência na prostituição, referida em alguns círculos políticos, é a escolha permitida pelo explorador em uma situação exploratória como nos tempos da escravidão. Nós podemos examinar o exercício da escolha no círculo de vida de uma mulher na prostituição durante um período de 20 anos de quando ela tem 15 anos até quando ela tem 35. Essa é uma projeção esperançosa, dado que a maior parte das membras da Apne Aap diz que o período de tempo normal que o corpo de uma mulher pode lidar com a prostituição é não mais que dez anos.
– Os primeiros cinco anos (15-20): Nesse período, garotas sequestradas, roubadas, enganadas, vendidas e atraídas são trancadas em pequenos quartos com janelas gradeadas, somente levadas para fora pela dona do bordel para que sirva até 15-20 compradores de sexo prostituído toda noite. A elas é servida somente uma refeição ao dia, fornecidas algumas roupas e artigos de higiene pessoal, mas a elas não é dado nenhum dinheiro que o comprador paga por elas. Elas se encontram em condições análogas à escravidão e não possuem escolha. Em toda conversa com elas, elas falam sobre querer voltar para casa.
– Os segundos cinco anos (20-25): Existe um período de socialização no interior dos bordéis e às mulheres lhes é ensinado a serem dependentes de drogas e álcool. As donas dos bordéis igualmente se certificam de que elas tenham uma ou duas crianças para que, assim, a mulher não pense em voltar para casa nunca mais. Nesse período, a mulher é permitida pela dona do bordel a manter metade do que elas ganham. As memórias de casa se tornam vagas devido à violência repetida e o trauma psicológico, e elas passam a sofrer da Síndrome de Estocolmo, onde as pequenas misericórdias dispensadas pelo sequestrador pareçam de grande importância. Com crianças, sofrendo de depressão e doenças, elas não enxergam uma maneira de sair. Nesse período, ao serem perguntadas, as mulheres dirão que querem permanecer nos bordéis e não querem ir para casa.
– Os terceiros cinco anos (25-30): Depois de dez anos de abuso físico, desnutrição e dependência de drogas e álcool, a capacidade de ganho da mulher reduz. Compradores de sexo prostituído procuram por meninas mais jovens. A elas lhes são permitidas manter todos os seus ganhos, mas esses ganhos são reduzidos e as necessidades das crianças aumentam. Nesse período, elas querem largar a prostituição, mas não possuem as habilidades de vida ou a saúde física para assim fazer. Elas não possuem escolha.
– Os quartos cinco anos (30-35): Nesse período, a mulher não tem compradores de sexo prostituído, nenhuma renda; possuem duas ou três crianças e doenças instaladas em seus corpos. Elas são jogadas para fora dos bordéis e terminam na calçada. Elas não conseguem dispor de sequer uma refeição ou até mesmo acesso a um banheiro. Elas não possuem opções e são forçadas a morrer nas ruas. Num período de 20 anos, mulheres falam sobre quererem exercitar a escolha de permanecer na prostituição por pelo menos cinco anos. E mesmo esse exercício de escolha ou agência é numa situação na qual mulheres sentem que não possuem outras opções e tentam fazer o melhor do que há.
Portanto, membras da Apne Aap não utilizam o termo “trabalhadora do sexo”. Elas estão em meio à uma heróica luta com nosso governo e algumas fundações internacionais para alterar a lei anti-tráfico indiana para punir aqueles que as exploram e remover todos os artigos na lei que punam vítimas sob acusação de aliciamento.
Na execução desta campanha, a Apne Aap Women Worldwide deparou-se com alguns interesses instalados. Ironicamente, essa oposição tem incluído muitos projetos de administração financiados por fundações internacionais que trabalham em áreas de prostituição e contratam cafetões e organizadores de bordéis como “educadores pareados” para obterem fácil acesso aos bórdeis com o propósito de distribuir preservativos. Eles fecham os olhos para as meninas pequenas e mulheres adultas mantidas em um sistema de escravidão e controle, que não podem dizer não para o sexo indesejado e muito menos sexo desprotegido. Eles estão mais interessados em proteger compradores masculinos de sexo prostituído de doenças do que proteger mulheres e garotas dos compradores. Essas são as mesmas soluções que as potências colonialistas usaram para controlar a sífilis nos séculos XVIII e XIX.
Os novos desafios colocados pela crise econômica num período de crescente neoliberalismo são os de que nós estamos sendo convidadas a aceitar mais uma vez a legitimidade da exploração como trabalho. Nós somos informadas que, se escolhemos por sermos exploradas, então não estamos sendo exploradas. Nós nunca fomos ditas que uma escolha deve ao menos possuir duas opções. Nós então somos convidadas a reconhecer e nos sentirmos empoderadas ao encontrar a “agência” no interior da exploração. Nós somos ditas que a prostituição é inevitável e nós devemos aceitá-la e negociar para mitigar suas circunstâncias.
Quando um problema é muito grande e lucra um grupo poderoso, existe uma honrada tentação de varrê-lo para debaixo do tapete ao supor que ele é inevitável. Isso é verdadeiro na escravidão até o movimento abolicionista do século XIX e do colonialismo até o contágio dos movimentos de independência no século XX.
Agora, essas mesmas forças estão no trabalho de atitudes em direção às realidades globais e nacionais da escravidão sexual. O maior normalizador de lucrar com o arrendamento, venda e invasão de corpos humanos é a ideia de que ele é muito grande para combater, que sempre existiu e que pode ser varrido para debaixo do tapete legalizando-o e simplesmente o aceitando. Aqueles que lucram – nesse caso, a rede global de traficantes do sexo, operadores de turismo sexual e donos de bordéis – são a maior força por trás do argumento de legalizar e aumentar os lucros que já competem com aqueles do tráfico global de armas e de drogas. Como com a escravidão e o colonialismo do passado, esse argumento possui força com aqueles que, no poder, estão tão distantes da realidade que eles não sabem as consequências, assim como aqueles mesmos que lucram com isso, quer seja economicamente, politicamente, ou como homens viciados em domínio.
O que irá diminuir e encerrar essa injustiça? Expor sua realidade: a falta de alternativas para aquelas que são prostituídas; o vício e a incapacidade de empatia em meio àqueles que criam a demanda e os resultados uniformemente desastrosos, quer a venda ou o arrendamento de seres humanos para propósitos sexuais tenha sido legalizada e normalizada.
Obrigada.
Fonte:
GUPTA, Ruchira. Sex is Not Work and Our Bodies Are Not for Sale. Disponível em: < http://www.rainandthunder.org/RuchiraGuptaSpeech.pdf>.