Introdução de “Unpacking Queer Politics”
Sheila Jeffreys
Introdução
Nos 1990s, um fenômeno conhecido como “packing” se desenvolveu no interior dos setores da comunidade lésbica (Volcano e Halberstam 1999). Isso implicava a utilização de um dildo abaixo da perna da calça para sugerir a existência de um pênis. Essa prática assinalava que, para as lésbicas que a adotavam, a veneração da masculinidade havia triunfado sobre o projeto lésbico-feminista de acabar com a hierarquia de gênero. Ao mesmo tempo, um culto ao transsexualismo se desenvolveu entre grupos similares de lésbicas. Algumas das lésbicas que haviam demonstrado seu comprometimento em alcançar o poder e privilégio masculinos por assumirem uma identidade “butch”, por se engajarem no packing e por manterem competições “drag king” para ver quem poderia mais convincentemente se parecer como um homem, e particularmente um homem gay, moveram-se em direção à cirurgia mutiladora e ao consumo de hormônios que prometiam a “autenticidade” de sua busca (Devor 1999). A mudança do auge do feminismo lésbico o qual compreendíamos, como Adrienne Rich disse, como “O significado de nosso amor por mulheres é o que temos de expandir constantemente” (Rich 1979: 230) a uma situação aonde, em algumas partes influentes e muito publicizadas da comunidade lésbica, masculinidade era o santo graal, não poderia ser mais profunda.
Por que isso aconteceu? Eu devo argumentar aqui que a razão mais significativa foi a influência de uma poderosa cultura gay masculina que, do final dos 1970s em diante, rejeitava o projeto da liberação gay de desmantelar a hierarquia de gênero e escolhia a “masculinidade” como seu objetivo. Através do sadomasoquismo, pornografia gay masculina, práticas sexuais de sexo público e prostituição que celebravam o privilégio masculino, áreas dominantes da cultura gay masculina criaram uma hipermasculinidade e disseram que isso era homossexualidade, e isso era bom. Na última década, vários livros estadunidenses escritos por homens gays lançaram críticas abrangentes da agenda de libertação sexual dos homens gays. Essas críticas são inspiradas primariamente por esssa contínua alta taxa de infecção por HIV nos EUA, mas também por uma percepção de que a cultura do sexo comercial gay empobrecia as vidas e os relacionamentos (Rotello 1997; Signorile 1998a). Alguns teóricos gays empregaram compreensões feministas para lançar violentas críticas no culto gay da masculinidade (Stoltenberg 1991; Levine 1998; Kendall 1997; Jensen 1998). Esse trabalho feito por homens gays é o ponto de partida mais útil pelo qual iniciar em um exame lésbico-feminista da cultura gay e queer atualmente. É o reconhecimento do impacto prejudicial da adoração gay da masculinidade nas vidas de lésbicas que me incita a examinar a cultura e a política gay masculina nesse livro.
Às práticas prejudiciais que se desenvolveram nesse período foram dadas todas justificativas teóricas no interior da política e teoria queer. Argumento que quando a política queer nos 1990s atacou os princípios da liberação gay e do feminismo lésbico, que requeriu a transformação da vida pessoal, houve um backlash contra a possibilidade da mudança social radical. A nova política era baseada, muito explicitamente, em um repúdio das ideias lésbicas feministas. A política queer consagrou um culto da masculinidade. Argumento aqui que a agenda política da política queer está danificando os interesses de lésbicas, mulheres no geral, e círculos marginalizados e vulneráveis de homens gays. A noção de que a política queer pode representar os interesses das lésbicas assim como dos homens gays emerge da ideia errônea de que lésbicas e homens gays podem formar um círculo unificado com interesses comuns. O feminismo lésbico foi criado da compreensão feminista de que lésbicas são mulheres, e que os interesses das mulheres em organizações políticas mistas são regularmente excluídos ou inclusive diretamente contrariados. Essa compreensão foi sendo perdida na política queer, e esse livro é escrito para trazer os interesses das mulheres e lésbicas mais uma vez para o primeiro plano da discussão política lésbica e gay.
A acolhida efusão de livros sobre teoria política e legal lésbica e gay dos 1990s parece iniciar da premissa de que lésbicas e homens gays formam uma categoria social unificada que possui uma agenda homogênea para servir interesses unificados (Evans 1993; Wilson 1995; Vaid 1995; Stychin 1995; Bell e Binnie 2000). Muito dessa nova escrita busca integrar lésbicas e gays na teorização da cidadania com a criação de novas categorias de cidadania sexual ou queer. Diane Richardson é uma das poucas vozes pontuando que lésbicas não podem ser simplesmente subordinadas no interior de tal categoria (Richardson 2000a, b). A ausência geral de tal ponto de vista feminista com relação à “cidadania sexual” é um enigma. Livros por teóricas feministas sobre a cidadania das mulheres analisam os interesses contraditórios de mulheres e homens. Elas pontuam que a ideias e a prática da cidadania dos homens foi criada precisamente da subordinação das mulheres (Pateman 1988; Vogel 1994). Mas essa compreensão feminista parece desaparecer na teorização da cidadania “sexual”. De fato, lésbicas e homens gays estão longe de uma categoria unificada com interesses unificados. Lésbicas são mulheres, e teorias lésbicas da cidadania devem continuar a examinar as contradições entre os interesses de mulheres e homens, particularmente com relação às contradições entre os interesses de homens gays e toda a comunidade de mulheres.
Sem Necessária Comunidade de Interesse
Lésbicas feministas, que optaram por se organizarem e viverem suas vidas separadamente dos homens gays, estiveram durante muito tempo sutilmente cientes de que não havia necessária comunidade de interesse entre lésbicas e homens gays. A poeta e escritora Adrienne Rich escreveu no final dos 1970s, quando o feminismo lésbico estava em seu pico, que os interesses de lésbicas eram ameaçados por ambas as culturas heterossexual e de homens gays.
Lésbicas foram forçadas a viverem entre as duas culturas, ambas dominadas pelo masculino, cada uma da qual negou e pôs em perigo nossa existência. Por um lado, existe a cultura patriarcal, heterossexista… Por outro lado, existe a cultura patriarcal homossexual, a cultura criada por homens homossexuais, refletindo tais estereótipos masculinos como dominância e submissão como modelos de relacionamento, e a separação do sexo do envolvimento emocional – uma cultura marcada pelo profundo ódio às mulheres. A cultura masculina “gay” ofereceu às lésbicas a imitação de estereótipos de papel de “butch” e “femme”, “ativa” e “passiva”, cruising e sadomasoquismo, e o violento, auto-destrutivo mundo dos bares “gays”. Nem a cultura heterossexual nem a cultura “gay” ofereceu às lésbicas um espaço no qual descobrir o que significava ser auto-definida, auto-afetuosa, identificada-mulher, nem uma imitação dos homens nem seu oposto objetificado. (Rich 1979: 225)
O feminismo lésbico ofereceu às lésbicas o espaço necessário no qual criar valores feministas lésbicos e expressar seu amor por mulheres. A filósofa lésbica-feminista Marilyn Frye escreveu incisivamente sobre os valores compartilhados que existem entre homens gays e heterossexuais e a necessidade de lésbicas em se separar para criar suas próprias comunidades e política (Frye 1983). A crise da AIDS e o nascimento da política queer levaram muitas lésbicas a se voltarem ao trabalho com homens gays enquanto sepultavam suas aflições sobre os valores da cultura gay masculina dominante. Isso é, apesar do fato de que alguns influentes escritores e ativistas gays não foram tímidos sobre expandir seus hostis sentimentos sobre mulheres e lésbicas. Um bom exemplo disso é a alegria com que alguns homens gays estiveram preparados para falar sobre o “fator eca”.
A existência do que tem sido chamado de “efeito eca” pode muito bem ser considerado a ficar no caminho de qualquer fácil suposição de existir uma categoria lésbica ou gay unificada no interior de uma cidadania pluralista. Esse termo é empregado em escritos gays masculinos para descrever a extrema repulsa experienciada por alguns homens gays no pensar ou ver corpos nus de mulheres. Ele tem sido bastante conhecido uma vez que workshops sobre o tópico têm sido realizados anualmente nas conferências da US National Lesbian and Gay Task Force. Eric Rofes, um membro de liderança do Sex Panic, tem se envolvido em organizar os workshops nos quais lésbicas e homens gays são admitidos a assistir para ouvir o que um acha do outro. Ele explica que é muito identificado com o lésbico – e o feminista –, e que é muito transtornado pelo “efeito eca” que ele experiencia. Ele escreve sobre passar por lésbicas tomando sol numa praia gay que estavam fazendo topless. Ele experimentou grande desconforto: “Quando finalmente atravessamos a seção de mulheres e os torsos de homens apareceram, minha respiração se acalma, minha pele para de suar, e meu coração para de acelerar” (Rofes 1998b: 45). Ele explica sua reação assim:
Eu sou um homem gay com amizades de longo prazo com lésbicas e um forte comprometimento em apoiar a cultura lésbica. Porém, eu sou um dos muitos gays que compartilham o que eu chamo de “o efeito eca” – uma resposta visceral variando da aversão à repugnância quando confrontado com sexo e corpos lésbicos. Ao longo de quase 25 anos de envolvimento nas culturas gays masculinas, eu testemunhei vários homens expressando sua repulsa ao sexo lésbico e aos corpos de mulheres. Eu ouvi inúmeras piadas “de atum”, vi rostos de homens azedarem quando sexo lésbico aparece em filmes, e assiti homens gays amontoados em pequenos grupos expressando desgosto sobre mulheres fazendo topless em manifestações políticas. (p. 46)
Piadas “de atum” surgem do hábito entre homens gays de chamarem mulheres de “peixe” após o que eles consideram ser o cheiro repulsivo de seus genitais. Alguns homens gays não suportam estar perto de lésbicas por causa da maneira como cheiram. Rofes cita um homem dizendo que ele não podia se tornar fisicamente próximo de lésbicas “por causa de seus odores que ele acreditava seus corpos emitiam” (p. 47).
Embora ele não tenha evidência da qual calcular isso, Rofes considera que um terço dos homens gays são assim repelidos. Por um tempo pelo menos, o termo “fator eca” era corrente. Por exemplo, um artigo por um escritor gay estadunidense publicado na revista gay masculina australiana Outrage em 1997 chamado “Entendendo como lidar com o fator eca” descreve homens gays indo para uma festa mista de forma a tentarem superar o se sentir “enojado” sobre genitais femininos. O autor comenta que “o fator eca na cultura gay masculina” “não é incomum entre homens gays” (Strubbe 1997: 44).
O racismo no Reino Unido nos 1960s foi frequentemente focado no suposto cheiro diferente de cidadãos asiático-britânicos. Os sentimentos desses homens gays que acham os corpos de mulheres tão difíceis de lidar lembra-me daquele tipo visceral de racismo. Homens e mulheres, qualquer que seja sua orientação sexual, são criados numa sociedade supremacista masculina que ensina que os corpos de mulheres são nojentos, ao passo que pênis conferem honra e orgulho. A saúde mental de lésbicas que estão procurando se recuperar desse ódio por mulheres de modo que assim possam amar e respeitar os corpos de mulheres pode não ser bem fornecido por qualquer nível de comunidade com homens que nutrem tal profunda misoginia. Rofes se sente culpado, e deseja superar seus sentimentos extraordinariamente negativos sobre mulheres, mas o que é surpreendente é que ele se sente capaz de falar sobre elas tão prontamente, enquanto que sentimentos similares com base em raça provavelmente não seriam considerados tão aceitáveis em relacionar. Em face de tais sentimentos, parece ser despropositado esperar qualquer comunidade direta de interesses entre lésbicas e homens gays.
A fim de que essa imagem da misoginia de homens gays não pareça tão desoladora, é importante pontuar que houve um homem gay na mesma antologia, Opposite Sex, que conteu o artigo sobre o fator “eca” no qual utilizou uma perspectiva lésbico-feminista e mostrou simpatia genuína pela experiência de mulheres. Robert Jensen explica quão solitário é tomar tal posição numa cultura gay sexual-libertária na qual o questionamento político da prática sexual é simplesmente barrado de todos os lados: “Para mim, ser gay significa não só reconhecer o desejo sexual por homens mas também resistir às normas e práticas do patriarcado… Tal comprometimento é difícil de fazer valer num mundo de privilégio masculino, e eu encontrei poucos modelos de como viver eticamente como um homem – hetero ou gay – em um patriarcado” (Jensen 1998: 152).
Jensen utiliza o trabalho de teóricas lésbicas feministas radicais tais como Marilyn Frye para apoiar sua recusa a fazer uma divisão público/privado. Ele não permite uma imunidade para a prática sexual gay masculina da crítica política: “são essas mesmas práticas que mimetizam a heterossexualidade em sua aceitação dos valores sexuais patriarcais: a desconexão do sexo do afeto e interação emocional com um outro, a equação heterossexual do sexo com penetração e dominação e submissão, e a mercantilização do sexo na pornografia” (Jensen 1998: 156). Em oposição direta ao liberalismo da política gay pública, ele considera que “Existem implicações políticas e éticas em todos os aspectos da vida cotidiana… Não existe escapatória do julgamento, nem devemos buscar tal escapatória” (p. 154).
Masculinidade Gay
Uma vez que sugiro neste livro que é a promoção e a celebração da masculinidade gay que cria a diferença de interesse mais fundamental entre a corrente masculina de agenda gay e os interesses de lésbicas e outras mulheres, é importante explicar o que quero dizer por masculinidade. Minha compreensão da masculinidade é que se refere ao comportamento que é construído pela dominação masculina e serve para mantê-la. A masculinidade não é só aquilo que pertence aos homens, uma vez que os homens podem ser vistos, e considerar a si mesmos, como sendo insuficientemente masculinos. Na verdade, isso é precisamente o que os homens gays antes dos 1970s frequentemente se consideravam, e eram considerados por outros. A masculinidade não é, então, um fato biológico, algo relacionado com hormônios específicos ou genes. O comportamento masculino ou a aparência ou os artefatos e o design significam a “masculinidade” como uma categoria política e não biológica. Nessa compreensão, a masculinidade não pode existir sem seu suposto oposto, a feminilidade, que diz respeito à subordinação feminina. Nem a masculinidade nem a feminilidade fazem sentido ou podem existir sem os outros como um ponto de referência (Connell 1995).
Embora escritores sobre a masculinidade como Robert Connell tendam, atualmente, a usar o termo “masculinidade” com um “s” – ou seja, masculinidades -, eu intencionalmente assim não o faço. Eu reconheço que a forma tomada pelo comportamento masculino dominante, a masculinidade, pode variar consideravelmente, e é influenciado pela classe, raça e muitos outros fatores. O uso do plural, no entanto, sugere que nem todas as variedades da masculinidade são problemáticas, e que algumas podem ser salvas. Vez que defino a masculinidade como o comportamento da dominação masculina, estou interessada em eliminá-la ao invés de salvar qualquer de sua variedade e, portanto, não usar o termo “masculinidades”. À medida que os homens gays como grupo buscam proteger politicamente sua prática da masculinidade, eles podem ser vistos como agindo da direção contrária aos interesses de mulheres, e de lésbicas como uma categoria de mulheres. Eles não podem, afinal de contas, ter sua masculinidade (em qualquer forma) para fazer com que se sintam melhores, sem a existência de uma classe substancial de pessoas subordinadas representando a feminilidade, e essa é atualmente mulher.
Os escritos críticos de Martin Levine sobre a masculinidade gay foram publicados postumamente por seu editor literário, Michal Kimmel (Levine 1998). Eles fornecem uma profunda análise do problema. Ele explica que, em uma liberação pós-gay, homens gays apropriaram a masculinidade como uma compensação pelos estereótipos femininos que foram forçados neles em períodos anteriores.
Eu argumento que homens gays ordenaram a sexualidade hipermasculina como uma forma de desafiar sua estigmatização como homens que falharam, como “maricas”, e que muitas das instituições que se desenvolveram no mundo gay masculino dos 1970s e início dos 1980s apoiavam e atendiam a esse código sexual hipermasculino – desde as lojas de roupa e butiques sexuais, a bares, balneários e ginásticas onipresentes. (Levine 1998: 5)
Uma masculinidade exagerada se tornou o estilo dominante na cultura gay e, como Levine pontua, através da influência de designers gays e da discoteca gay, ajudaram a criar a moda para tal masculinidade exagerada na cultura heterossexual fashion também. Em Unpacking Queer Politics, analisarei as práticas da masculinidade que moldam as áreas da cultura sexual gay masculina e a agenda política queer uma vez que se relaciona com a prática sexual. Vou olhar para o efeito que possui sobre lésbicas, homens gays em uma cultura gay mista que celebra e erotiza a masculinidade como o bem mais elevado.
Examinarei as demandas políticas de alguns ativistas gays, em grupos como Outrage no Reino Unido e Sex Panic nos EUA, para libertação sexual nas áreas de sexo público, pornografia e sadomasoquismo, e argumentar que eles são baseados em uma agenda tradicionalmente patriarcal. Tais ativistas tendem a dizer que são desafiadores na distinção público/privado na qual a atividade sexual é usualmente confinada à espera privada. No entanto, as campanhas para ampliar o sexo “privado” no domínio público são baseadas na noção de que sexo deve continuar a ser reconhecido como “privado” – ou seja, protegido da crítica política e digno de respeito como um exercício da liberdade individual mesmo se executado em um parque público. A agenda lésbico-feminista é similar à manifestação de mulheres em desafiarem a distinção público/privado na qual compreensões comuns da política são baseadas. Lésbicas feministas querem uma democracia política dentro e fora de casa, sem distinção que proteja uma escravidão privada de exploração sexual e violação.
O projeto lésbico-feminista em criar a igualdade no mundo privado do sexo e relacionamentos, baseado na compreensão de que o pessoal é político, pode ser a base de criar um mundo público que é saudável para mulheres viverem. Lésbicas feministas que vivem agora de acordo com esses princípios, aquelas que são ridicularizadas na mídia e em fóruns queer como politicamente corretas, fascistas “sexo-fóbicas”, devem talvez ser entendidas como a vanguarda da mudança social radical.